
Aqui há uns
anos pediram-me que escrevesse sobre uma escritora, de que eu já tinha
ouvido falar, já tinha lido, e que, desde essas alturas o que mais tinha
retido, da pessoa em si, é que por ter adormecido na sua cama com um
cigarro acesso, provocou um incêndio que destruiu todo o seu quarto, foi
hospitalizada em estado grave, e que teve quase a mão direita amputada
devido às queimaduras sofridas.
Sabia também que se tinha
apaixonado perdidamente em jovem por um escritor, mas em nada resultou
porque ele era homosexual, e que, ao seu primeiro filho foi
diagnosticado esquizofrenia, algo do qual nunca se perdoou, como se a
culpa da doença dele, fosse toda sua.

A pergunta que desde essa altura me faço sem
resposta, até que ponto a vida influencia o autor, neste caso a autora?
Respondo apenas que a vida, essa viagem por vezes tão curta, faz de
certeza ir-se mais e muito mais além, no caso da autora em causa “a vida
sempre superexigiu de mim, mas também sempre superexigi da vida”
Muitos já sabem de quem se trata, mas nada melhor que deixar a escrita falar pela autora, completar os silêncios escondidos.
“Antes
de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o
que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse
encarregado de me contar como era o amor. [...] Porque o mais
surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou
intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo
surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até
hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas
feminino. Pois juro que a vida é bonita.
O que sou então? Sou uma
pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que
pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável.
Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando
consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a
vida humana ou animal.” “Sou tão misteriosa que não me entendo.
Através
de meus graves erros — que um dia eu talvez os possa mencionar sem me
vangloriar deles — é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu
amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do
Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins
levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já
nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.”

Minha alma eu a
deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem,
olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de
olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei
obrigada a levar."
Clarice Lispector (10 de dezembro 1920 –
9 de dezembro 1977), continuará sempre a ser um mistério para quem a
lê, embora em cada frase dê as pistas, as chaves para esse eu tantas
vezes habitado pelo outro, ou pelos tantos outros.
Por : Ricardo Pocinho
Excelente post, Ricardo.
ResponderExcluirEscrito como Clarice merece!
Beijos
Olá Alione. A frase de Clarice "Sou tão misteriosa que não me entendo", representa, em minha opinião, esse universo tão próprio, tão povoado de outros, tão perto de uma outra frase, esta de Arthur Rimbaud que tenta caraterizar esse outro, que se quer libertar "Je est un autre" (Eu sou um outro, ou em tradução literal Eu é um outro). O mistério que envolve Clarice, uma mulher pouco dada à vida social que fervilhava na altura no Rio de Janeiro, muito virada para a família (os filhos acima de tudo), e a escrita magistral, existencial, fragmentária com as correntes literárias de então, fazem dela uma escritora especial, e em cada releitura dos seus textos, outras portas se abrem, sempre. Agradeço-te o comentário, a leitura. (Ricardo Pocinho)
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